Nunca quis. Nem muito, nem
parte. Nunca fui eu, nem dona, nem senhora. Sempre fiquei entre o meio e a
metade. Nunca passei de meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu
nome: Maria Metade.
Fosse eu invocada por voz
de macho. Fosse eu retirada da ausência por desejo de alguém. Me tivesse
calhado, ao menos, um homem completo, pessoa acabada. Mas não, me coube a
metade de um homem. Se diz, de língua girada: o meu cara-metade. Pois aquele,
nem meu, nem cara. E se metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele, um
semimacho. Para ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro.
A meu esposo chamavam de
Seis. Desde nascença ele nunca ascendeu a pessoa. Em vez de nome lhe puseram um
número. O algarismo dizia toda a sua vida: despegava às seis, retornava às
seis. Seis irmãos, todos falecidos. Seis empregos, todos perdidos. E acrescento
um segredo: seis amantes, todas actuais.
Das poucas vezes que me
falou, nunca para mim olhou. Estou ainda por sentir seus olhos pousarem em mim.
Nem quando lhe pedi, em momento de amor: que me desaguasse uma atenção. Ao que
retorquiu:
-
Tenho mais onde gastar meu tempo.
Engravidei, certa vez. Mas
foi semiprenhez. Desconcebi, em meio tempo, meio sonho, meia esperança. O que
eu era: um gasto, um extravio de coisa nenhuma. Depois do aborto, reduzida a
ninguém, meu sofrer foi ainda maior. Sendo metade, sofria pelo dobro.
Pede-me o senhor que
relate o sucedido. Quer saber o motivo de estar nesta cadeia, desejando ser
condenada para o resto deste nada que é a minha vida? O senhor que é escritor
não se ponha já a compor. Escreva conforme, no respeito do que confesso. E tal
e qual.
Pois, conforme lhe
antedisse: a verdade não confio a ninguém. Verdade é luxo de rico. A nós,
menores de existência, resta-nos a mentira. Sovi pequena, a minha força vem da
mentira. A minha força é uma mentira. Não é verdade, senhor escritor?
Por isso, lhe deitei o
aviso: eu minto até a Deus. Sim, Lhe minto, a Ele. Afinal, Deus me trata como
meu marido: um nunca me olha, o Outro nunca me vê. Nem um nem outro me
ascenderam a essa luz que felicita outras mulheres. Sequer um filho eu tive.
Que ter-se filhos não é coisa que se faça por metade. E metade eu sou. Maria
Metade. Agora, o que aspiro é ficar em sombra perpétua. Condenada por crime
maior: apunhalar meu marido, esse a quem prestei juramento de eternidade. É por
causa desse crime que o senhor está aqui, não é assim?
Pois lhe confesso: aqui,
penumbreada nesta prisão, não sofro tanto quanto sofria antes. É que aqui,
sabe, acabo saindo mais que lá em minha casa natal. Vou onde?
Saio pelo pé de meu
pensamento. Por via de lembrança eu retorno ao Cine Olympia, em minha cidade de
outro tempo. Sim, porque depois de matar o Seis reganhei acesso a minhas
lembranças. É assim que, cada noite, volto à matiné das quatro de minha
meninice. Não entrava no cinema que me estava interdito. Eu tinha a raça
errada, a idade errada, a vida errada. Mas ficava no outro lado do passeio, a
assistir ao riso dos alheios. Ali passavam as moças belas, brancas, mulatas
algumas. Era lá que eu sonhava. Não sonhava ser feliz, que isso era demasiado
em mim. Sonhava para me sentir longínqua, distante até do meu cheiro. Ali,
frente ao Cinema Olympia, sonhei tanto até o sonho me sujar.
Regressava a horas,
entrava em casa pelas traseiras para não chorar ante os olhos sofridos de minha
mãe. Minha fatia de tristeza era uma ofensa perante as verdadeiras e inteiras
mágoas dela. Regressava depois do quarto, olhos recompostos, fingindo uma
alegriazita. Minha mãe se apercebia do meu estado, desembrulho sem prenda. E me
dava conselho:
-
Sonhe com cuidado, Mariazita. Não esqueça, você é pobre. E um pobre não sonha
tudo, nem sonha depressa.
Vantagem da prisão é que
todo o dia é domingo, toda a hora é de matiné das quatro. É só meu sonho dar um
passo e eu já vou sentando minha privada tristeza no passeio público. Volto
onde eu não amei, mas sonhei ser amada. É só um passo e eu atravesso o passeio
público. E não mais precisarei de invejar o sorvete, o riso, a risca no
penteado.
Pouco restou da minha
cidadezinha. Onde era terra sem gente ficou gente sem terra. Onde havia um
rosto, hoje há poeira. O trilho das goiabas se asfixiou no asfalto. Nem a chuva
tem onde repousar. A cidade se foi assemelhando a todas as outras. Nessa
parecença, o meu lugar foi falecendo. Nessa morte foi levada minha lembrança de
mim. A única memória que me resta: a migalha de um tempo, o único tempo que me
deu sonhos. Sob vigilância de minha velha mãe, eu cuidava de não sonhar tudo,
nem depressa. Ainda que fossem metades de sonhos, esses pedaços ainda me adoçam
o sono, deitada no frio da cela.
O senhor não está aqui por
mim. Mas por minha história. Isso eu sei e lhe concedo. Quer saber como
sucedeu? Foi em tarde de cinza, o céu descido abaixo das nuvens.
Eu pretendia era revirar
página de um despedaçado livro. Descosturar-me desse Seis, meu marido. Eu
queria me ver separada dele para sempre, desunidos até a morte nos perder de
vista. Até não ser possível morrermos mais.
Naquela vez, já a decisão
me havia tomado. Fui recebê-lo na porta, a roupa abotoada por metade, o punhal
escondido em minha mão. Chovia, de lavar céu. Eu mesma me aguei aos olhos de
Seis. Brinquei, provoquei, mostrei o cinto distraído, desapertado. Provoquei com
perfume que minha vizinha me emprestou.
-
Você quer-me molhada pela chuva.
-
Quero-lhe é mais molhada que chuva.
Então, quase derrapei em
minha decisão. Estava-se emendando fatalidade? É que, por primeira vez, meu
marido me olhou. Seu rosto se emoldurou, único retrato que comigo guardo. Para
disfarçar, revirei a chuinga entre os lábios, fiz adivinhar o veludo da
carícia. Mas o gesto já estava fadado em minha mão e, num abrir sem fechar de
olhos, o meu Seis, que Deus tenha, o meu Seis estava todo pronunciado no chão.
Decorado com sangue, aos ímpetos, mapeando o soalho.
Relatei o sucedido, tudo
de minha autoria. Mas não confesso crime, senhor. Não. Afinal, não fui eu que
lhe tirei vida. A vida, a bem dizer, já não estava nele. O que sucedeu, sim,
foi ele tombar sobre o punhal, tropeçado em sua bebedeira. O Seis, meu Seis, se
convertera em meia dúzia. A condizer com a minha metade de destino.
Não o matei. E disso tenho
pena. Porque esse assassinato me faria sentir inteira. Por agora, prossigo
metade, meio culpada, meio desculpada.
Por isso lhe peço, doutor
escritor. Me ajude numa mentira que me dê autoria da culpa. Uma inteira culpa,
uma inteira razão de ser condenada. Por maior que seja a pena, não haverá
castigo maior que a vida que já cumpri. E agora, por amor dessa mentirosa
lembrança, o senhor me abra a porta do Cine Olympia. Isso, faça-me esse
obséquio, lhe estou agradecendo. Para eu, finalmente, espreitar essa luz que
vem de trás, da máquina de projectar, mas que nos surge sempre pela frente. E
sente-se comigo, aqui ao meu lado, a assistirmos a esse filme que está
correndo. Já vê, lá na tela, o meu homem, esse que chamam de Seis? Vê como ele,
agora, no escurinho da sala está olhando para mim? Só para mim, só para mim,
só.
Mia
Couto, O Fio das Missangas
Meu conto preferido, desse meu autor preferido =)
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